(I) Introdução
A modernidade, segundo Eric Voegelin, gera uma suspeita em relação à transcendência tanto em termos morais quanto epistemológicos (HUGHES, 2003). Associada à intolerância, a moral transcendente será tratada como fanática, presunçosa e que abusa da ignorância do povo, o qual prefere seguir uma autoridade a fazer uso do seu próprio entendimento. Lembremo-nos de Immanuel Kant, para o qual o sujeito deve “[…] servir-se de si mesmo sem a direção de outrem” (KANT, 2010, p. 63). A moral heterônoma será rechaçada como uma moral típica de um sujeito menor, ou seja, de um indivíduo que tem de ser tutelado como uma criança.
No que diz respeito ao conhecimento, os objetos da fé não podem ser totalmente esclarecidos pela razão ou pela ciência, pois carregam em si obscuridades que só serão aceitas pela crença dos ingênuos. A realidade é reduzida ao campo empírico. A ciência moderna exige que os conceitos sejam precisos para que a descrição do objeto atinja um certo rigor, visto que, segundo Francis Bacon
(1973), os conceitos de substância, qualidade, geração, corrupção, matéria e forma — comumente tratados pelos metafísicos — são criações da fantasia[1]. No seu ensaio sobre o entendimento, Hume (2004, p. 222) sugere que, ao tomarmos em nossas mãos um volume qualquer, de teologia ou metafísica escolástica, deveríamos fazer a seguinte pergunta: “Contém ele qualquer raciocínio abstrato referente a números e quantidades? Contém qualquer raciocínio experimental referente a questões de fato e de existência?”. Sendo a resposta não, a única ação a ser feita é jogá-los às chamas, pois nada mais são do que obras ilusórias e sofísticas (HUME, 2004).
A modernidade, desse modo, como elucida Ernest Cassirer (1994, p. 98), “é uma tentativa de excluir das fundações da filosofia da experiência os elementos ‘metafísicos’”. Segundo Voegelin (2002, p. 68), “o termo ‘metafísica’ tornou-se numa injúria e a religião num ‘ópio do povo’ ou ainda, numa formulação mais recente, uma ‘ilusão’ de futuro incerto”. Não seria exagerado dizer que é contra esse movimento anti-metafísico e anti-transcendente que Voegelin se posta.
(II) A política da transcendência em Eric Voegelin
Colocando-se contra esses pressupostos anti-metafísicos e transcendentes modernos, a compreensão da natureza humana na filosofia moral e política de Eric Voegelin conceberá a transcendência como fator preponderante para o estabelecimento de uma ordem na existência humana. Voegelin, ao refletir sobre o aspecto existencial e as estruturas de valores e símbolos que compõem a política, constatará que é por meio do complexo de símbolos, possuinte de diversos graus de compactação e diferenciação — que perpassam os mitos[2] e ritos até atingir a teoria —, que se manifestará a experiência de que “(…) o homem é inteiramente homem em virtude de sua participação em um todo que transcende a sua experiência particular” (VOEGELIN, 1982, p. 33).
O contrário dessa experiência é o movimento gnóstico, que, como esclarece Lima Vaz (2012), é a divinização da imanência com a finalidade de empreender uma inversão radical do movimento para a Transcendência. As mudanças proporcionadas por esse novo arranjo ético e político, que hipervaloriza a imanência, fizeram surgir um desprezo pelo ser humano, em vez de sua exaltação, ao nivelar o seu valor com o dos outros animais. As relações utilitaristas se impuseram no núcleo das decisões sociais. Houve um esvaziamento do humano (que se conecta com o divino, seja pela lei moral, como no caso da filosofia socrático-platônica, ou por meio da imagem e semelhança de Deus dos hebreus ou cristãos).
O processo de desumanização, desse modo, para Voegelin, sempre esteve ligado à negação de Deus. Quando os laços entre homem e Deus são desfeitos, perde-se completamente o significado de ser humano: “A desdivinização e a desumanização do homem pertencem uma à outra” (VOEGELIN, 2008, p. 130). É com esse problema fundamental que o Totalitarismo Nazista — entendido como desfecho de um processo de imanentização escatológica que perfaz toda a modernidade — pode ser compreendido, de acordo com Voegelin. Esse regime totalitário, mais do que uma imposição do poder estabelecido por uma ideologia e pelo terror como instrumento de poder[3], é a negação do ser humano em seu mais alto grau. Da relação entre razão e divindade é possível resgatar o valor do ser humano. A crise estabelecida com a revolta apostática diz respeito não a uma desordem institucional ou psicopatológica. Ela se direciona para a questão espiritual e, ato contínuo, de ordem pneumopatológica (que podemos traduzir como sendo uma doença da alma).
Mendro Castro Henriques (2010, p. 90) explica que “os movimentos modernos de desordem negam as origens noéticas da diferenciação da realidade”, de modo que o ser eterno passa a ser reduzido ao ser no tempo. Neste caso, a consciência humana encontra-se absolutamente imanentizada, pois só pode apreender a realidade por meio de uma teorização que traduza em conceitos os fenômenos. A expressão simbólica da experiência espiritual é considerada opaca e mal-entendida, tendo de ser validada pela crítica racional (VOEGELIN, 2017). O homem moderno é um animal como outro qualquer em termos de valor, visto que sua existência é comum a de todos os outros seres — se houver alguma diferença, é por uma mera questão de grau. Esse nivelamento, segundo Barry Cooper (VOEGELIN, 2017), faz surgir uma moralidade secularizada[4] que só tem o motivo de despertar nos homens, pelo bem da utilidade social, um sentimento de compaixão pela humanidade[5].
O processo de desumanização ocorre por causa do banimento dos símbolos da religiosidade supramundana (VOEGELIN, 2002). Com a perda de uma realidade superior, o ser humano cria o seu próprio apocalipse, tomando como espelho a ecclesia cristã, com a diferença de que “os seus anunciadores modernos dão relevo às suas criações simbólicas dos juízos científicos” (VOEGELIN, 2002, p. 71). Lançando mão da explicação de Unamuno (2013, p. 55), se a humanidade fosse reduzida ao âmbito da imanência, ela seria “uma fatídica procissão de fantasmas, que vão do nada até o nada”; a humanidade tornar-se-ia, nas palavras de Voegelin (2002, p. 70), um grande “coletivo do desenvolvimento, ao qual cada homem deve dar sua contribuição”; encerrada mundanamente, só avançaria “(…) enquanto totalidade e o sentido da existência individual torna-se na ação instrumental com vista ao progresso coletivo”. Com a perda dos valores e símbolos transcendentes, tudo poderia ser justificado pelo reino da imanência.
A imanentização da vida é um processo que abarca aquilo que Voegelin denominou de gnose de um terceiro tipo. Pois a gnose enquanto tal pode ser diferenciada de três formas: intelectual, emocional e volitiva. A intelectual envolve o ato de penetrar nos mistérios da criação e da existência, como fizeram Hegel ou Schelling; a emocional é a “(…) presença da substância divina na alma humana, como, por exemplo, nos líderes sectários paracléticos” (VOEGELIN, 1982, p. 95); e a volitiva toma necessariamente, conforme nos explica Voegelin (1982, p. 95), “(…) a forma de uma redenção ativista do homem e da sociedade, tal como representada por ativistas revolucionários como Comte, Marx ou Hitler”. Esta gnose volitiva fará surgir a fé metastática, que tem como finalidade a mudança completa da realidade imanente.
A tentativa de se estabelecer a ordem comunitária será percebida em diversos movimentos políticos modernos e contemporâneos. Poderemos percebê-la nos pressupostos sociais de Karl Marx, no anarquismo de Mickhail Bakunin ou mesmo no bolchevismo, o qual estabelece uma fé absoluta na preeminência da sociedade (GURIAN apud MAIER, 2005). A diferença é que a sociedade, nessa ânsia dos bolcheviques de tentar estabelecer uma sociedade perfeita, toma o lugar da utopia religiosa dos milenaristas. Entrementes, a busca pelo estabelecimento do Paraíso sobre a Terra permanece com a mesma intensidade. Os partidos políticos de cunho totalitário sempre se colocam como capazes de interpretar a vontade do povo. São deuses que dizem conhecer o melhor para aqueles que desconhecem o caminho da verdade.
(III) Conclusão
As religiões políticas serão assentadas nesses dogmas ideológicos que foram se desdobrando na modernidade. O Nazismo carregará uma fé escatológica intramundana. A salvação e a redenção de toda a humanidade ou de uma parcela de eleitos serão privilégios daqueles que seguirem seus ditames – os eleitos. A gnose, nesse aspecto, tenta “abolir a constituição do ser que se origina no ser divinotranscendente e substituí-la por uma ordem do ser imanente ao mundo, cuja consumação se encontra em poder da ação humana”[6] (VOEGELIN, 2009, p. 168).
Os regimes totalitaristas são uma política religiosa. O Führer nazista, por exemplo, se ergue como sendo o único portador da vontade do povo (VOEGELIN, 2002). Dentro dessa perspectiva, a salvação só pode acontecer sob a égide da política nazista. Como nos explica Giorgio Galli (1989, p. 114), “Hitler apresenta-se nos primeiros anos vinte, na sua maneira de dizer, como o tambor que despertará a Alemanha, como o arauto que lhe prenuncia o renascimento”. Assim como Cristo libertou os homens dos seus pecados, o Führer se considera como o salvador que, nas palavras de Voegelin (2002, p. 80), “(…) após a luta com Deus, desce da montanha para libertar o povo, para libertar a alma individual que fez juramento de obediência ao Graal e à edificação da grande catedral do Reich”. A religiosidade intramundana, portanto, pressupõe o necessário abandono de Deus e a inversão escatológica do cristianismo.
O mito do Estado, que Voegelin denomina de “apocalipse consciente”, é criado para unir afetivamente as massas e lhes proporcionar uma redenção politicamente eficaz. Dentro dessa estrutura tudo pode ser justificado pelo representante das massas. O Führer será a representação do povo, uma espécie de sua encarnação, sendo suas ações aprioristicamente justificadas, visto que, ao tomar uma decisão, a decisão não é sua, mas do povo. Ele é o único portador da vontade de todos (VOEGELIN, 2002).
REFERÊNCIAS
BACON, Francis. Novum Organum e outros. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BACON, Francis. O progresso do conhecimento. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
CASSIRER, Ernest. A filosofia do iluminismo. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
GALLI, Giorgio. Hitler e o Nazismo Mágico: as componentes esotéricas do III Reich. Edições 70, 1989.
GURIAN. In: MAIER, Hans. Totalitarism and political religions: concepts for the comparison of dictatorships. Londo and New York: Routledge, 2005.
HENRIQUES. Mendo Castro. A filosofia civil de Eric Voegelin. São Paulo: É Realizações, 2010.
HUGHES, Glenn. Transcendence and History: the search for ultimacy from aciente societies to postmodernity. Columbia: University of Missouri Press, 2003.
HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “esclarecimento”? (Aufklärung). In: Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2010.
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia (v. VII): raízes da modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.
VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002.
VOEGELIN, Eric. Fé e filosofia política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin (1934-1964). São Paulo: É Realizações, 2017.
VOEGELIN, Eric. Ordem e História (Vol III): Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2009c.
VOEGELIN, Eric. Ordem e História (Vol. IV): A era ecumênica. São Paulo: Loyola, 2010.
VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas. É Realizações: São Paulo, 2008.
[1] Esta concepção se encontra também na seguinte passagem de sua obra O progresso do conhecimento: “Este tipo de saber degenerado prevaleceu sobretudo entre os escolásticos, os quais, providos de engenho afiado e robusto, e abundância de tempo livre, mas pequena variedade de leituras, pois estavam encerrados seus entendimentos nas celas de uns poucos autores (principalmente Aristóteles seu ditador), como o estavam suas pessoas nas celas de monastérios e colégios” (BACON, 2007, p. 49).
[2] Conforme Voegelin (2010, p. 130) “o mito cosmogônico é uma forma mais antiga e mais abrangente de expressão da ordem do ser”.
[3] Essa é a interpretação clássica de Hannah Arendt (2012, p. 620, grifo nosso), em As origens do totalitarismo: “O terror total, a essência do regime totalitário, não existe a favor nem contra os homens. (…) O terror, portanto, como servo obediente do movimento natural ou histórico, tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em todo sentido específico, mas a própria fonte de liberdade que está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar o novo”.
[4] O significado de secularização para Eric Voegelin (2017, p. 48) é “a atitude ela qual a história, incluindo os fenômenos da religião cristã, é concebida como uma corrente intramundana de acontecimentos humanos”.
[5] “A constituição transcendental da humanidade pelo pneuma de Cristo foi substituída pela fé a constituição do mundo intramundana da humanidade pela ‘compaixão’” (VOEGELIN, 2017, p. 78).
[6] “Em todos los movimentos gnósticos se trata de abolir la constituición del ser que se origina em el ser divino-transcedente y sustituirla por um orden del ser inmanente al mundo, cuya consumación se encuentra em poder de la acción humana”.
* Anais do VIII Congresso da ANPTECRE, Volume I, 2021, p. 1081-1088.