UTOPIA E RELIGIÃO: SOBRE O CONCEITO DE REVOLTA APOSTÁTICA

O Estado moderno, fundamentado nos ideais de Maquiavel (1469-1527 d.C.) e Thomas Hobbes (1588-1679 d.C.), será erguido com a intenção de se estabelecer uma instituição que crie a moral ou ordene as paixões violentas por meio de um vínculo comum de interesses (Commonwealth). No entanto, não se trata de uma ordem que pressuponha qualquer influência extramundana. Há uma mudança em curso que destitui das relações humanas qualquer resíduo religioso que se enraíze no transcendente. Isso fará com que haja uma rejeição de ordem espiritual para que surja uma ordem radicalmente nova (FEDERICI, 2011). Esse processo, o qual Eric Voegelin denomina de Revolta Apostática, que possui em sua estrutura o gnosticismo (movimento que transforma a natureza humana e a própria existência por meio de um plano revolucionário de ação, ao tentar fazer baixar o Paraíso sobre a Terra [FEDERICI, 2011])[1], subverte os princípios que fundamentam a escatologia cristã, de modo que a salvação aconteça pelos esforços exclusivamente humanos, sem nenhuma intervenção divina. É interessante observar que esse anseio revolucionário pela completa independência humana se manifesta em diversas culturas e contextos. No mundo egípcio, de acordo com Voegelin (2002), Akhenaton se projeta como o deus-homem que estabelece uma espécie de reinado divino. Biblicamente, poderíamos citar a Torre de Babel — evento em que, pelo esforço próprio, os homens tentaram alcançar os céus. No universo grego, o mito de Prometeu desvela esse íntimo desejo humano de tomar a morada de Zeus. Na modernidade e, ato contínuo, na contemporaneidade, esse movimento permanece, mas como um fenômeno tecnocientífico, em que se acredita que o progresso técnico da ciência guiará o homem para uma sociedade perfeita, na qual todas as adversidades, sejam de ordem física, psíquica, moral ou político-institucional, serão superadas.

O problema que surge da revolta apostática, proveniente do corpo místico das nações que substitui o corpo de Cristo, para Eric Voegelin (2017), desencadeia um completo desenraizamento das relações políticas e existenciais com a transcendência. Lima Vaz (2012, p. 16), ao explicar a filosofia voegeliniana, assevera que há um esforço do indivíduo moderno para se colocar como fonte do movimento de “autotranscendência desdobrando-se na esfera da imanência: nas instituições do universo político , na construção do mundo técnico, na concepção autonômica do agir ético, na fundamentação teórica, enfim,  da visão do mundo”. Mendro Castro Henriques (2010, p. 90) explica que “os movimentos modernos de desordem negam as origens noéticas da diferenciação da realidade”, de modo que  o ser eterno passa a ser reduzido ao ser no tempo. A realidade temporal-imanente passa a ser a única referência, por ser considerada a única existente. Essa redução do eterno no tempo é a divinização da imanência com a finalidade de empreender uma inversão radical do movimento para a Transcendência (VAZ, 2012).

Há um otimismo que impulsiona o espírito progressista das sociedades modernas, que, além de desprezar a ciência antiga, por considerá-la insuficiente, falsa ou fantasiosa, fundamentará o Iluminismo e torná-lo antitradicionalista por excelência. Na perspectiva dos filósofos modernos, progresso significa desenvolvimento tecnocientífico e tecnocrático. Neste último caso, a política deixa de se fundamentar nas virtudes  (ao abandonar a concepção antiga da política das virtudes) para fazer emergir a ideia de soberania. De toda forma, o anseio que está por trás desses esforços remonta a muitas características dos movimentos milenaristas (XII d.C), sendo a principal delas o desejo de viver em uma sociedade igualitária.  Nessa ambição está também o sonho de se obter o completo controle da natureza por meio do método científico. Não é por acaso que a intenção baconiana de o conhecimento se apoderar da physis permaneça presente até hoje no âmbito científico. Um dos grandes sonhos modernos, portanto, será o de viver em um lugar que ofereça conforto físico e abundância material, para que ninguém sofra qualquer mal. Uma sociedade em que as pessoas vivam com a garantia de obter a felicidade. 

Thomas More (1478-1535 d.C.), em sua ilha Utopia, sintetizará esse  espírito que norteará sua época e os projetos modernos. A utopia, etimologicamente, pode significar tanto “lugar inexistente” quanto “lugar feliz”[2]. Uma das causas da felicidade, para More, bem como para diversas outras políticas modernas, será a igualdade. Entre os utopienses prevalece o comunitarismo. A propriedade privada é o princípio de desordem. More concordaria com o pressuposto rousseauniano de que a caixa de Pandora é o desejo de propriedade privada; que todas as desgraças surgem quando alguém cerca um determinado lugar e afirma “isso é meu!”. Se aqui, no nosso mundo, todas as coisas são privadas, lá, na Utopia, todas as coisas são compartilhadas (MORE, 2017). Sendo assim, uma República só poderá ser bem gerida se não houver bens particulares (MORE, 2017, p. 81): 

(…) o mais sábio dos homens fácil previu um único e exclusivo caminho para o bem-estar de todos — a igualdade das coisas, que eu não sei se pode ser atingida quando os bens pertencem a particulares (…). Por isso, estou inteiramente convencido de que, a não ser que a propriedade privada seja abolida, não poderá haver equidade e justa distribuição de bens, nem poderão ser geridos os assuntos morais de modo feliz.

É interessante notar que essa felicidade terrena se desvia do seu horizonte cristão. Pois se é possível ser feliz aqui, significa que o Paraíso, de alguma forma, pode ser construído; de que por meio de uma ordenação político-social poderemos corrigir os erros de Adão e Eva. Só depende de nós, seres humanos, extirpar o mal originário. É nesse ponto que Eric Voegelin enxerga na Utopia o início do gnosticismo moderno, por aspirar à alteração da estrutura da realidade. Há nessa obra uma inversão escatológica sendo proposta como projeto político que retoma os preceitos pelagianistas, ou seja, de que a subida aos Céus (ou a descida do Paraíso sobre a Terra) pode ser realizada pelos esforços exclusivamente humanos. Para Voegelin, Thomas More busca soluções dos problemas na imanência (MAIER, 2005). A ordem da qual o santo católico lança mão em sua Utopia não possui um enraizamento metafísico e muito menos religioso. Ela é exercida com soluções institucionais, semelhantes às propostas que vemos nas teorias maquiaveliana e hobbesiana. Eis o motivo, segundo Hans Maier (2005), de Eric Voegelin acusar More de ter traído a ordem transcendente. Suas soluções para os problemas espirituais, apesar de ser um cristão católico, são todas fundamentadas na experiência (MAIER, 2005).  No projeto utópico de More — e não seria exagerado expandir essa definição para o conceito de utopia em si — , a natureza interfere em tudo, inclusive na inteligência, por se tratar também de uma qualidade natural (CACCIARI; PRODI, 2017). As soluções para os problemas passam a ser proporcionadas pela razão. Entrementes, não se trata de uma secularização em que se nega o sagrado. O que se presencia é um novo modo de sacralização, que se constitui como se fosse um enxerto religioso que se desliga da Cristandade (CACCIARI; PRODI, 2017). 

            Sendo assim, os propósitos políticos e existenciais modernos possuem um traço em comum: substituem a espiritualidade transcendente pelo que Voegelin denomina de espiritualidade antiespiritual. Thomas Hobbes, por exemplo, corta a ligação com Deus e deixa no lugar um Estado onipotente; Francis Bacon (1561-1626 d.C.) e Thommaso Campanella (1568-1639 d.C.) (não excluiria da lista René Descartes [1596-1650]) colocam na inventividade humana uma esperança redentora; Spinoza (1632-1677 d.C.) imanentiza o divino; John Locke reduz as leis divinas às leis naturais do entendimento; Rousseau (1712-1778 d.C.) coloca a Vontade Geral como manifestação do bem supremo; Voltaire considera a metafísica um mero entretenimento intelectual; David Hume (1711-1776 d.C.) propõe jogar às chamas os livros sobre metafísica e afirma que a moral é um problema de gosto; Kant (1724-1804 d.C.) propõe uma moral independente de qualquer heteronomia; Comte (1798-1857 d.C.) se coloca como arauto da nova era positiva; para Hegel (1770-1831 d.C.) a História é a manifestação do Espírito; e Nietzsche (1844-1900 d.C.), por fim,  afirma que Deus está morto. Os exemplos desse desencadeamento são vastos. Não seria, portanto, exagerado afirmar que o ser humano moderno possui pretensões divinas, pois, como explica Voegelin, a fé metastática, que presume ser possível corrigir defeitos da natureza ou de uma determinada época por meio da excelsa racionalidade científica, governa praticamente todas as suas ações. O que surge a reboque dessas intenções não são somente teorias, mas um sentido existencial substitutivo da fé religiosa. É a partir dessa substituição que podemos apontar o projeto da Utopia como uma pretensão de mudança axiológica que envolve todas as dimensões da vida[3], principalmente a de ordem espiritual. 


[1] De acordo com Henriques (2010,p. 171), a diferença em Voegelin entre o gnosticismo surgido na Antiguidade, que se transforma ao longo da Idade Média e emerge no séc. XIII “(…) como a mais poderosa fonte de perturbações e desordens no mundo ocidental”  e  sua forma Moderna é que, para os gnósticos helenísticos, o mundo é reduzido a nada diante do conhecimento de Deu, enquanto que o moderno coloca o peso da realidade no mundo: o resto é ficção. Ainda conforme Heriques (2010, p. 171), “ambos se reconhecem consubstanciais à plenitude do real e opostos às massas alienadas”. É neste ponto que Voegelin se afasta da noção erudita de gnose, visto que “o fenômeno gnóstico coincide com o curso da civilização ocidental posterior ao cristianismo, e não pode ser circunscrito a um só período; as correntes modernas de gnose são socialmente mais relevantes que as formas helenísticas; o movimento tem continuidade até o mundo contemporâneo” (HENRIQUES, 2010, p. 171). 

[2] De acordo com o Dicionário de Política, de Norberto Bobbio, Nicola Metteucci e Gianfranco Pasquino (2004, p. 1285), o neologismo Utopia pode-se entender como “contração do grego οὐ (e como substitutiva do uso mais correto de um α privativo e não mais como contração de ευ). Enfim, ‘lugar inexistente’ ou ‘lugar feliz’?. No mesmo título Morus especificava que o objeto do libellus seria a busca de um ‘ótimo Estado’ e, na sextilha de Anemólio, este levará adiante a dialética dos contra-sensos, unindo o significado de inexistente e de feliz: ‘Utopia priscis dicta (…), Eutopia merito sum vocanda nomine’”.

[3] Como bem explica Eric Voegelin (1982, p. 56), “uma teoria não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência em sociedade; é a tentativa de formular o sentido da existência, explicando o conteúdo de um gênero definido de experiência”.


REFERÊNCIAS

BOBBIO, Noberto; METTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.

CACCIARI, Massimo; PRODI, Paolo. Ocidente sem Utopias. Belo Horizonte: Editora Âyiné,: 2017.

FEDERICI, Michael P. Eric Voegelin: a restauração da Ordem. São Paulo: É Realizações, 2011.

HENRIQUES, Mendo Castro. A filosofia civil de Eric Voegelin. São Paulo: É Realizações, 2010.

MAIER, Hans. Totalitarism and political religions: concepts for the comparison of dictatorships. Londo and New York: Routledge, 2005.

MORE, Thomas. Utopia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia (v. VII): raízes da modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 2012.VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. Brasília, 1982. VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002.

VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas (v. VI): Revolução e Nova Ciência. São Paulo: É Rea- lizações, 2017.


* Anais da SOTER 32º, Belo Horizonte, 2019, p. 870-874.

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