ERIC VOEGELIN E O ESPÍRITO CONSERVADOR: O GNOSTICISMO COMO EMBOTAMENTO ESPIRITUAL

  1. Introdução

Pretendemos examinar, brevemente, a semelhança entre as críticas de Eric Voegelin à modernidade e a de alguns pontos dos conservadores, tomando como referência Edmund Burke, Roger Scruton e Edmund Burke, para, assim, compreendermos melhor os conceitos que perfazem, grosso modo, o movimento conservador contemporâneo. Assim teremos uma visão um pouco mais ampla sobre as críticas estabelecidas por aqueles que se rebeleram, em alguma medida, contra certos aspectos modernos. De modo geral, podemos apontar certos conceitos que delinearão esta explicação: fé metastáfica, revolta apofântica, gnosticismo moderno e fanatismo secular. As explicações que concebem esses conceitos como fundamento têm um objetivo comum: apontar os perigos de uma política que inverte a escatologia cristã a partir de uma crença no progressismo técnico proporcionado pela razão instrumental.

  1. Eric Voegelin e o espírito conservador

A modernidade pode ser definida de diversas formas. Possui um amplo sentido, a depender do prisma através do qual se estuda seus fenômenos. Podemos definir o espírito moderno, em geral, como uma tentativa de averiguar toda a realidade a partir da ciência. Este movimento tem origem no Renascimento. É próprio dos renascentistas tentarem estabelecer um novo método de estudo da realidade. Francis Bacon é reconhecido por isso. No campo político, poderíamos colocar Maquiavel, com seu exame político separado dos valores éticos e religiosos, e Thomas More, com seu conceito de utopia, cada um dentro de seus respectivos limites de crenças e valores, entre os filósofos que modificariam por completo a estrutura política na modernidade.

Os problemas para os antigos não são os mesmos para Maquiavel.  Deus, salvação, relações entre a imanência e a transcendência, o fundamento divino do poder e da justiça, nada disso, conforme nos explica Alexandre Koyré (2011, p. 12), existe para ele: “Só há uma realidade: a do Estado; um fato: o poder; e um problema: como afirmar e conservar o poder no Estado”. Se o seu método de análise da política é inteiramente empirista, assim também será o seu modo de examinar a natureza humana. Pois, segundo sua concepção, o homem não é um ser orientado para a virtude. Explica Leo Strauss (2016, p. 60) que, “se assim fosse, as dores de consciência seriam o maior dos males para ele; mas o fato é que descobrimos que as dores do fracasso são pelo menos tão fortes quanto as dores da culpa”.

Para Maquiavel, portanto, a única realidade a ser considerada é a da experiência histórica. Se quisermos entender o homem e sua relação com os outros homens, temos de tomar como parâmetro a própria história. Ele, nesse ponto, é discípulo de Cícero, para o qual a história é a nossa grande mestra. Para Maquiavel, a política não é mais considerada a partir dos seus aspectos espirituais – não é uma estrutura de salvação, como pressupunha Platão e diversos medievais. O seu imoralismo é, segundo Koyré (2011, p. 13), pura lógica: “do ponto de vista em que se coloca, a religião e a moral são apenas condicionantes sociais. É preciso saber lidar com fatos. Fatos com os quais se possa contar. Isso é tudo. Num cálculo político, é preciso levar em conta todos os fatores políticos”.

Com os contratualistas essa lógica será expandida.  Hobbes considerará a política a partir da cosmovisão do Leviatã. O Estado tem de ser um monstro maior capaz de lidar com os monstros menores: os seres humanos. A física da política hobbesiana leva em consideração somente o movimento. Pois é isso que é o modus operandi da natureza humana: um movimento contínuo pelo poder que se cessa somente com a morte – “Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte”, afirma Hobbes (2008, Cap. XI, 47). Segundo Leo Strauss (2014, p. 207), “o mais importante no pensamento de Hobbes era provavelmente a concepção não de um novo tipo de filosofia ou ciência, mas de um universo exclusivamente constituído de corpos e movimentos sem nenhuma finalidade”.

Neste contexto, o ser humano é reduzido à empiria. Não há nada além desta realidade para ser considerado. Ele passa a ser uma sombra transitória que paira neste mundo. Está aqui somente para desejar até a sua morte. “A modernidade é uma colossal perda de fé”, afirma Mcallister (2017, p. 366). Entrementes, a secularização não pode ser entendida apenas como um afastamento da presença de Deus. Pois não se trata somente de uma negação da transcendência – como anunciou Nietzsche (2001, aforismo 125): “Deus está morto”. Ela se configura também como uma substituição. Esclarece Mircea Eliade (2008) que o homem é um ser essencialmente religioso. Tende a sacralizar a realidade em todos os seus níveis. Não existe um ateísmo puro, pois até o ateu sacraliza a experiência da qual participa – os seus filhos são sagrados, a sua casa é sagrada, os seus pais são sagrados etc.

No entanto, quando passamos a compreender o processo de secularização como substituição, vemos que o ser humano, negando-se a participar da tensão existencial que se manifesta na nossa consciência – tensão entre imanência e transcendência –, tende a hipervalorizar um dos polos. A modernidade valoriza a imanência ao extremo, a ponto de criar uma realidade artificial feita exclusivamente pelas mãos do homem. Aquilo que Léo Strauss denominaria de subcaverna – fazendo referência a uma realidade mais abaixo da Caverna de Platão, na qual reina a ausência completa de fé. Explica Mcallister (2017, p. 264): “A redução ontológica provoca a perda da fé, e sem fé os homens não têm nenhum propósito senão aquele oferecido por eles mesmos”.

Esse reducionismo da realidade é denominado por Eric Voegelin de descarrilamento, que é ocasionado pela fé metastática. Essa fé tem como fundamento a crença de que a realidade pode ser moldada de acordo com atos revolucionários. O mundo pode ser moldado segundo a imagem e semelhança do homem que acredita possuir a chave de libertação para os sofrimentos que assolam a humanidade. Essa foi a força motriz dos movimentos que Voegelin (1982) denomina de gnosticismo moderno, sendo guiados pela pressuposição de estágios que se superam no decorrer da história humana.

O início desse processo se dá com Joachim de Fiori. Os três períodos históricos estabelecidos por ele – idade do Pai, do Filho e do Espírito – carrega em si um movimento pré-determinado, que iremos enxergar em Auguste Comte, Hegel, Karl Marx e Hitler. Na visão comtiana, pressupõem-se as idades teológica, metafísica e positiva; Hegel, por sua vez, os três estágios do espírito (subjetivo, objetivo e absoluto); Karl Marx, a dialética dos três estágios do comunismo primitivo, da sociedade de classes e do comunismo final; por fim, Hitler anuncia o Terceiro Reich. Sendo assim, para Voegelin (1982, p. 87), “em sua escatologia trinitária, Joachim criou o conjunto de símbolos que preside até hoje, a auto-interpretação da sociedade política moderna”[1].

A análise de Voegelin toma como parâmetro uma modernidade que descarrilará na negação da transcendência como parte da realidade humana, que se desenvolve naquilo que conceitua como sendo o Entremeio (Metaxy). Esse conceito é retirado de Platão para entender como o Ser se manifesta na realidade. Na interpretação de Voegelin, o homem é tensionado na sua consciência para ir em direção a um fundamento, por meio de simbolizações e conceitos. A resposta será uma busca à medida que o Mistério se torna luminoso nos atos de questionamento.  Tentar compreender a realidade não é um esforço por respostas definitivas, mas um processo de busca que se torna cada vez mais iluminado. Reduzir a realidade a um dos seus polos de transcendência ou imanência seria distorcer a realidade humana, que é a experiência ou vivência no Entremeio. Como nos explica Hughes (2019, p. 76), “imagens e símbolos da transcendência divina tornaram-se, para um número crescente de pessoas, enigmas que falham em comunicar um senso de verdade genuinamente inteligível ou percebível”.

Nesse aspecto, o espírito moderno prega um espiritualismo anti-espiritual. A política, a partir dessa interpretação, tornar-se-á utópica e será conduzida por um processo de revolta apostática, que, segundo Federici (2011, p. 208), é a “rejeição da ordem espiritual e a substituição por uma ordem espiritual diferente. A rejeição do positivismo ao cristianismo é um exemplo de revolta apostática. Voegelin refere-se à nova ordem espiritual como uma ‘contrarreligião’”. É como se o homem se movesse em um mundo em que todo o seu sentido fosse uma criação artificial. Segundo Mircea Eliade (apud HUGHES, 2019, p. 79),

todos os pontos de vista que reduzem o significado histórico a condições puramente mundanas são não apenas frustrantes, mas, em última instância, aterradores, pois, ao remover o significado atemporal daquelas condições, eles ‘as esvaziam de todo significado exemplar’, e o que resulta é uma ‘terrível banalização da história’, porque o ser físico, mundano, histórico, é um ser intrinsecamente perecível. As ações humanas são, com efeito, reduzidas a manobras temporárias no vazio.

É por isso que a política moderna tende a se tornar estritamente ideológica. Ela não se preocupa em oferecer um meio ordenado no qual o homem possa atingir a sua maturidade (spoudaios), no sentido aristotélico. É neste ponto da crítica à ideologia que há uma congruência entre a obra de Voegelin e o discurso conservador. Vale salientar que Voegelin não era conservador. Fez fortes críticas a quem desejou colocá-lo em um espectro político. No entanto, a sua obra, assim como a do Leo Strauss, acabou por ser absorvida pelo conservadorismo. Suas críticas ao gnosticismo moderno como uma inversão da escatologia cristã estão alinhadas com diversas vertentes conservadoras. Para ficar somente com três: Edmund Burke, Roger Scruton e Russell Kirk.

A violência da Revolução Francesa despertou a atenção de Edmund Burke para os perigos da engenharia social. De acordo com Burke, a política não é um espaço para experimentos, mas para lançar mão daquilo que já foi experimentado. Segundo sua constatação, a França revolucionária “(…) soltou as rédeas da autoridade real, duplicou a licenciosidade de uma feroz dissolução dos costumes e de uma descrença insolente nas opiniões e práticas” (BURKE, 2017, p. 73-74). A sociedade, assim, não é como um corpo mecânico, no qual se pode trocar suas peças ou remontá-la ao gosto de um grupo que se considera mais sábio e preparado para isso. Ela deve ser vista como um corpo vivo, em que os remédios prescritos têm de ser aqueles que foram testados. Pois ninguém oferece ao enfermo qualquer tipo de remédio, mas somente aquele que está dentro de uma margem de segurança. Essa mesma prudência deveria ser realizada com os problemas sociais: “Na verdade, o que todos os homens sábios pretendem é evitar que as coisas cheguem ao pior. Aqueles que esperam reformas perfeitas, esses desgraçadamente enganam ou são enganados” (BURKE apud KIRK, 2016, p. 193).

O perigo de acelerar o progresso por meio de medidas artificiais, na visão burkeana, ocasionaria desastres ainda maiores. É por isso que Scruton afirma que deveríamos, em termos políticos, colocar em prática um certo pessimismo político, que contraria as políticas utópicas. Para Scruton (2011, p. 67), “as utopias são visões de um estado futuro em que os conflitos e problemas da vida humana se resolvem completamente”. Há sempre um esforço para fazer baixar o paraíso sobre a terra. Como se fosse possível ao homem erradicar integralmente os males sociais; como se a promessa cristã pudesse ser transfigurada neste mundo. Isso resplandece na visão de Bernard Shaw, para o qual na sociedade o mal não é nem incurável nem muito difícil de curar quando se faz o diagnóstico cientificamente (SOWELL, 2011).

A esperança na razão científica como provedora de todo o bem, segundo os conservadores, é típico das ideologias modernas. Em Kirk (2013, p. 16), a contraposição à ideologia se manifesta de forma até mais clara. De modo que, na sua visão, “a ideologia oferece uma imitação de religião e uma filosofia fraudulenta”. E continua:

A ideologia é uma religião invertida, negando a doutrina cristã de salvação pela graça, após a morte, e pondo em seu lugar a salvação coletiva, aqui na Terra, por meio da revolução e da violência. A ideologia herda o fanatismo que, algumas vezes, afetou a fé religiosa e aplica essa crença intolerante a preocupações seculares (KIRK, 2013, p. 95).

Aquilo que Voegelin denominou de fé metastática aparece em Kirk como um fanatismo intolerante de ordem secular. Aqui podemos perceber que o movimento gnóstico, que tenta mudar o mundo e estabelecer uma realidade artificial moldada pelas mãos humanas, destituindo a transcendência da realidade por meio de uma engenharia social, é uma crítica comum entre esses autores. Outro aspecto a ser notado é que as crenças são realocadas no processo da secularização. As pessoas não deixam de ter crenças públicas, nem de impô-las, mas fazem isso em outras dimensões, não necessariamente religiosas. É justamente isso que levou Voegelin (2009, p. 32) a afirmar que “a ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o homem. É a violação do primeiro e do décimo mandamentos, se quisermos empregar a linguagem da ordem israelita; é a nosos, a doença do espírito, empregando a linguagem de Ésquilo e Platão”. Vemos, assim, tanto em Voegelin quanto em Burke, Scruton e Kirk, que há uma crítica à política ideológica que estimula a crença política como a única salvadora possível, que busca oferecer a redenção humana e libertar os seus cidadãos de um grande mal, e que isso acaba por descarrilar em uma realidade desordenada, na qual todas as dimensões humanas são reduzidas à imanência, a um isolamento do homem neste mundo, como se estivesse jogado nele e sem nenhum amparo, tendo de inventar realidades para sustentar sua existência – ou pelo menos sustentar o sentido dela.

  1. Conclusão

Eric Voegelin afirma que, por causa das distorções promovidas pelas diversas ideologias, a realidade foi desconfigurada. O Intermediário divino-humano, que foi diferenciado a partir do profundo impacto da filosofia grega e do profetismo hebraico, acabou por ser anulado pelas distorções modernas. A retração de Deus para o homem fez surgir a figura de um super-homem metastático que realiza tanto a si mesmo quanto a realidade artificial em que se encontra. Os conservadores citados no decorrer do texto também analisam essa revolução intramundana a partir de uma corrupção do sentido religioso. A inversão do sentido escatológico faz com que a política se torne utópica e promova a ideia de uma sociedade perfeita, na qual o progresso técnico-científico conseguirá oferecer ao homem aquilo que as religiões somente prometeram: um reino sem sofrimento. As críticas, desse modo, realizadas por Voegelin e os conservadores adquirem uma unidade, de modo que ambas se voltam para os problemas relacionados ao gnostocismo moderno, que é a vontade de moldar a realidade de acordo com os ideais de uma determinada intelligentsia. A revolta contra a modernidade é uma tentativa de resgatar, na visão desses autores, a ordem da realidade, que se torna possível somente com o restabelecimento de um dos polos que a constitui, que é a transcendência.


REFERÊNCIAS

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Vide Editorial, 2017.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins fontes, 2008.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

HUGHES, Glenn. Transcendência e história. Curitiba: Editora Danúbio, 2019.

KIRK, Russell. A política da prudência. São Paulo: É Realizações, 2013.

KIRK, Russell. Edmund Burke: Redescobrindo um gênio. São Paulo: É Realizações, 2016.

KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

MCALLISTER, Ted V. Revolta contra a modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a busca de uma ordem pós-liberal. São Paulo: É Realizações, 2017.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança. Lisboa: Quetzal Editores, 2011.

SOWELL, Thomas. Conflito de visões: origens ideológicas das lutas políticas. São Paulo: É Realizações, 2012.

STRAUSS. Leo. Direito natural e história. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.

VOEGELIN, Eric. Ordem e História (Vol. V): Em busca da ordem. São Paulo: Loyola, 2010.

[1] C.f.: “O primeiro desses símbolos é a concepção da história como uma sequência de três eras, das quais a última é claramente o Terceiro Reino Final. É possível reconhecer como variações desse símbolo a divisão da história em antiga, medieval e moderna; a teoria de Turgot e de Comte acerca da sequência das fases teológica, metafísica e científica; a dialética hegeliana dos três estágios de liberdade e realização espiritual auto-refletiva; a dialética marxista dos três estágios do comunismo primitivo, sociedade de classes e comunismo final; e, por último, o símbolo nacional-socialista do Terceiro Reino – embora este seja um caso especial a exigir maior atenção” (VOEGELIN, 1982, p. 88).


* Anais da SOTER 33º, Belo Horizonte, 2021, p. 937-943.

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