O NAZISMO COMO RELIGIÃO POLÍTICA

O otimismo, segundo Roger Scruton (2011), substitui aquilo que “é” por aquilo que “será”. É a supressão do passado pelo futuro que permite o não-ser vencer o ser. Pois o otimista tende a considerar a realidade insossa, repleta de vício e sofrimento[1], tornando-se necessário, portanto, modificá-la; oferecer-lhe mais sabor, mais graça, mais prazer. A condição de pecado deve ser superada. Um novo homem, com um novo reino, tem de surgir.  Esta nova ordem, como nos explica Norman Cohn (1970), será inteiramente justa, onde os pobres serão protegidos, a paz e a harmonia reinarão, os animais selvagens e perigosos serão mansos e inofensivos. Entrementes, quem será capaz de proporcionar isso aos homens? Somente um messias, que há de surgir depois de um clímax da maldade. Ao findar do Apocalipse, o salvador fará baixar o Paraíso sobre a Terra. E assim a humanidade viverá mil anos de paz. 

É com essa promessa, de um retorno de Cristo, que os milenaristas se perpetuaram na era medieval. O novo Cristo, o “Cristo-guerreiro”, como denomina Cohn (1970, p. 24), fará surgir um governo em que reinará a paz por mil anos. É o imperador dos Últimos Dias. Trata-se de o retorno do próprio Cristo ou de alguém, um avatar talvez, que se anuncia com os seus poderes[2]. É ele quem restabelecerá a ordem, a paz universal, a completa vitória em relação ao mal. A concepção histórica sobre a qual se desenvolve essa cosmovisão é trinitária. Um dos maiores responsáveis por essa interpretação – que será reabsorvida diversas vezes na modernidade: positivismo e nazismo são somente duas dessas apropriações –  foi Joaquim de Fiori (1145-1202), que entende o desenvolvimento dos fenômenos históricos como uma sucessão de três idades: a primeira delas é a Idade do Pai, a segunda, a Idade do Filho e a terceira, a Idade do Espírito Santo. Sendo que a primeira representaria o anúncio da Lei, a segunda surgiria para proclamar o Evangelho e a terceira, a renúncia completa do pecado. Como esclarece Cohn (1970, p. 89), a história é vista como uma passagem do Inverno à Primavera. Uma progressão perfeita em que o fim seria “(…) comparado à luz das estrelas e à aurora”, ao Sabá (tempo de descanso da humanidade). 

É interessante notar que, como nos esclarece Mihai Murariu (2014, p. 76), “sua obra não era um trabalho profético baseado numa revelação direta de Deus, mas no seu ‘intelecto espiritual’ (donum spiritualis intellectus)”[3]. É fruto de uma interpretação que se coloca como graciosa, uma espécie de receptáculo da graça do Espírito Santo. Neste caso, Fiori exerce a função de um profeta. Mas não se trata de um profeta no sentido estritamente cristão (que em termos escatológicos afirma a salvação como sendo transmundana ou trans-histórica), pois a salvação que vislumbra é intramundana. Há aqui uma teologia da história que marcará o modo de se compreender os processos históricos na modernidade. De acordo com Massimo Cacciari e Paolo Prodi (2017, p. 47), pouco a pouco essa visão vai “(…) crescendo e se torna capaz de se despir da sua veste teológica para alcançar a nova religião da nação”. A cadeia de influência do abade italiano passa pelo anabatista revolucionário Thomas Müntzer, no século XVI, por Campanella, no século XVII e pode atingir até mesmo Hegel, no século XIX, para o qual a história está pré-determinada numa estrutura dialética que tende à síntese final (e perfeita). 

Podemos apontar que os regimes totalitaristas surgem com as transformações seculares dessas estruturas religiosas. O secularismo,  mais que negação da religião ou mesmo dos aspectos sagrados, é entendido como substituição, ou mesmo reabsorção do sagrado dentro das novas estruturas[4]. Para Voegelin (1982, p. 87), “em sua escatologia trinitária, Joaquim criou o conjunto de símbolos que preside, até hoje, a auto-interpretação da sociedade política moderna”. A ideia de realização absoluta na imanência se desenvolveu vagarosamente, num processo, a grosso modo, de transição do humanismo ao iluminismo, tendo por base a ideia de progresso, a qual acarretará na secularização, que Voegelin (1982) identificou como sendo a segunda fase da imanentização. 

De toda forma, a imanentização da vida é um processo que abarca aquilo que Voegelin denominou de gnose de um terceiro tipo. Pois a gnose enquanto tal ela pode ser diferenciada de três formas: intelectual, emocional e volitiva. A intelectual envolve o ato de penetrar nos mistérios da criação e da existência, como fizeram Hegel ou Schelling; a emocional é a “(…) presença da substância divina na alma humana, como, por exemplo, nos líderes sectários paracléticos” (VOEGELIN, 1982, p. 95); e a volitiva toma necessariamente, conforme nos explica Voegelin (1982, p. 95), “(…) a forma de uma redenção ativista do homem e da sociedade, tal como representada por ativistas revolucionários como Comte, Marx ou Hitler”. Esta gnose volitiva fará surgir a fé metastática, que tem como finalidade a mudança completa da realidade imanente. O Deus está morto nietzschiano representaria o assassinato gnóstico que é ecoado pelos sacrifícios no altar dos Estados totalitaristas, em nome do processo civilizatório. Como nos explica Federici (2011, p. 91), “os componentes ideológicos da modernidade  (…) são manifestações de gnosticismo. São desordens espirituais, e a corrupção da política que eles criam é o resultado da desordem existencial”. De acordo com Voegelin (2002, .p. 70), 

a humanidade toma-se no grande coletivo do desenvolvimento, ao qual cada homem deve dar a sua contribuição; ela está encerrada mundamente, só avança enquanto totalidade e o sentido da existência individual torna-se na ação instrumental com vista ao progresso coletivo. 

As religiões políticas, sendo assim, são aquelas ideologias políticas que têm uma fé inabalável num futuro distante e radiante, sob a forma de uma ordem a ser criada pelas mãos humanas, capazes de portar a salvação e a redenção de toda a humanidade ou de uma parcela .  A gnose, nesse aspecto, tenta “abolir a constituição do ser que se origina no ser divino-transcendente e substituí-la por uma ordem do ser imanente ao mundo, cuja consumação se encontra em poder da ação humana”[5] (VOEGELIN, 2009, p. 168) . Essa fé no mundo retoma a escatologia histórica de Fiori.

Em termos simbólicos, o regime totalitarista, como anunciou Mussolini a respeito do seu fascismo, é uma ideia religiosa e, também, uma política religiosa (VOEGELIN, 2002). É interessante notar que, como bem explicou Michael Schäfer, (MAIER, 2005, p. 28), “a ‘permanente mobilização da população’ só pode ser realizada por meio de uma ‘abusiva exploração do sentimento religioso’”. Da mesma forma, para Gurian (MAIER, 2005), o Estado assume a posição de uma pseudo-igreja. Neste ponto, é realmente importante notar que os partidos políticos de cunho totalitário sempre se colocam como capazes de interpretar a vontade do povo. São como profetas, ou mesmo deuses, que sabem o melhor para aqueles que desconhecem o caminho da verdade. Voegelin (2002, p. 76) explica que o Füherer é o Espírito (Volksgeist) “(…) que penetra na realidade histórica; o Deus intramundano fala ao Führer como o Deus supramundano falava a Abraão, e o Führer transforma as palavras divinas em ordens aos seus partidários e ao povo”. 

O Nazismo, portanto, se ergue, por meio do seu Führer, como sendo o único portador da vontade do povo (VOEGELIN, 2002). Desse modo, a salvação só pode acontecer com o partido nazista. Como nos explica Giorgio Galli (1989, p. 114), “Hitler apresenta-se nos primeiros anos vinte, na sua maneira de dizer, como o tambor que despertará a Alemanha, como o arauto que lhe prenuncia o renascimento”. Assim como Cristo libertou os homens dos seus pecados, o Führer se considera como o salvador que, nas palavras de Voegelin (2002, p. 80), “(…) após a luta com Deus, desce da montanha para libertar o povo, para libertar a alma individual que fez juramento de obediência ao Graal e à edificação da grande catedral do Reich”. A religiosidade intramundana, portanto, pressupõe o necessário abandono de Deus e a inversão escatológica do cristianismo. O Nazismo, sendo assim, mais do que simplesmente um regime do terror, é a concretização da absoluta fé no homem.


REFERÊNCIAS

CACCUARU, Massimo; PRODI, Paolo. Ocidente sem utopias. Belo Horizonte: Editora Âyine, 2017.

MORE, Thomas. Utopia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 

MAIER, HANS. Totalitarianism and political religion (Volume 1). Nova York: Routledge, 2005.

MURARIU, Mihai. Historical eschatology, political utopia and european modernity, Journal for the Study of Religions and Ideologies, vol. 13, issue 37, spring 2014, p. 73-92.

CACCIARI, Massimo; PRODI, Paolo. Ocidente sem Utopias. Belo Horizonte: Editora Âyiné,: 2017.

SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança. Lisboa: Quetzal Editores, 2011.

BOBBIO, Noberto; METTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002. 

COHN, Norman. Na senda do milénio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Presença, 1970.


[1] Essa é a visão típica do pessimista. Para Scruton, quem não compartilha desse otimismo aceita o mundo e as suas imperfeições, pressupõem um “melhoramento” a partir de um processo prudente e demorado, sem pressupor os progressos revolucionários.  

[2] São Gregório narra a história de um homem de Bourges que, em sua peregrinação, anunciava-se como Cristo, na companhia de uma mulher a quem chamava de Maria (COHN, 1970).

[3] “His was not a prophetic work based on direct revelation from God14, but on his ‘spiritual intellect’ (donum spiritualis intellectus)”.

[4] Esta é a visão de Massimo Cacciari e Paolo Prodi (2017, p. 48), para os quais  a utopia não pressupõe necessariamente um processo de secularização, mas sua própria sacralização, ou seja, “(…) um enxerto em religiões que se desligam da ‘cristandade’ tradicional para novos mundos”. 

[5] “Em todos los movimentos gnósticos se trata de abolir la constituición del ser que se origina em el ser divino-transcedente y sustituirla por um orden del ser inmanente al mundo, cuya consumación se encuentra em poder de la acción humana”.


* Anais do PPGCR da PUC-Campinas, Campinas, volume 3, 2020, p. 48-52.

1 thoughts on “O NAZISMO COMO RELIGIÃO POLÍTICA

  1. Marcio CASTRO says:

    Parece que seria realmente impossível, fora do discurso religioso e da incorporação de um Fuhrer, possível gerar ” um otimismo revanchista” na Alemanha derrotada na primeira guerra. .

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